quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Um banco ali?
No meio do entulho. Como uma mensagem caótica, difusa como se fosse sonhada. Ambientada correctamente por uma luz meio tosca de um dia de inverno seco e invulgarmente solarengo. Meio direito e meio torto, assente sobre sabe-se lá o quê.

O meu amigo que ia na frente atirou uma ou duas três pedras. Uma raspou-lhe o tampo. Mas teimosa ficou. A intenção de apedrejar aquela madalena pareceu logo a seguir ridícula e sem sentido algum. Agora assemelhava-se mais a um trono do que outra coisa qualquer.

Sem explicação e sem palavras entre nós, essa imagem tomou-nos de assalto. A imaginação de toda a cena transformou-se aventureira e magnética de uma dimensão que só parece ganhar proporções daquelas quando estamos naquelas tenras idades.

Lasquei de imediato a perna e foi claro para todos que o alvo iria ser difícil. O terreno era instável. Ao final, todo um prédio que ali outrora se erguia já devoluto jazia empilhado sobre si mesmo. Um fole de tábua, vidro, gesso e argamassa.

Os meus amigos ganharam a dianteira, o espírito de competição reinava e o banco (sentar nele sobre o monte de elevação considerável) era o alvo primordial. Os riscos eram aceitáveis, o prémio valia créditos sociais tremendos, mesmo que fossem esgotados logo nos instantes seguintes, tudo dependeria da valentia do percurso, da escolha da majestosa forma de assumir o trono e o que fazer com ele após a tomada triunfante.

30 Anos quase depois lembro me disto pois à cabeceira de uma mesa de um churrasco improvisado na terra de um amigo meu, dos quais nenhum desse momento está presente e que na multi variedade de tipologias de assentos disponíveis, calhou me um banco muito semelhante.

Madeira, muito gasta e polida, vestígios desaparecidos de que outrora fora pintada de uma cor qualquer, um buraco no tampo para suster a invasão de um dedo que a manuseasse e a presença notada da austeridade do tempo pelas lascas profundas nos três pés que a compõem e lhe conferem ainda a utilidade de banco e assento. Dói me o cu. É pequeno e desconfortável. Deixa-me ridiculamente com os queixos na mesa. Que se lixe!

Todos temos um banco destes, ou já tivemos ou já conhecemos quem teve ou tem. Igual. Sem mais nem menos.

E ao ver que o banco era o único de repente disponível para me sentar, pensei

Um banco aqui?

E talvez fosse esse o gatilho que me fez recuar para trás no tempo, vendo os meus 3 amigos já com uma larga diferença de distância de mim, e a lutar por entre manobras sacadas e exageradas de filmes de aventuras de domingo à tarde. A encarnar personagens e sons heróicos e claramente demonstrativos de futuras patologias de personalidade. Pequenas coisas que nos definiriam como seres humanos mais tarde.

Estávamos numa idade em que o poder do insulto e do palavrão era mais do que um statment, era uma atitude libertária, um assumir de personalidade. Um Ipiranga de desafio e consciência. Chamar filho da puta a alguém da nossa igual condição tinha muito mais sabor. Fazia muito mais sentido. Com muito maior utilidade pela sua veia naif e pelo facto de que as repercussões não seriam de grande monta caso algum se sentisse ofendido. Agora é um baixo nível sem comentário possível e estarmos a por mesmo a jeito de receber um belo troco.

Pois gritei que filhos da puta, que nem sequer ajudavam um ferido. E durante uns segundos ainda fiz essa fita assumida de ensanguentado moribundo entre os escombros.
Vendo que não ligavam um chavo à minha veia teatral que começava já ali em tenra idade a mostrar-se. Pensei que teria de me adiantar de alguma forma aquele grupo de chacais traidores que já se acercavam perigosamente do trono.

Rasgaram-se calças, esfolaram-se joelhos, insultava-se com fartura, mandava-se calhaus uns aos outros, ria-se, dizia-se muita parvoíce. Apreciava-se os tralhos de uns e dávamos nós uns também.

Algures no meio de tanta algazarra, ouvimos uma voz brutal. Um “ eh pah!!!! Atão qué isso?”

A melhor imagem que vos posso passar é de quando se manda um berro a dois ou três cães, uns encolhem-se e há sempre um que foge. E foi o que aconteceu com um que ao “ toca a sair daí já seus ranhosos!!!” se espalhou na fuga de forma genial, indo de cara contra o entulho. Eu encolhido ainda olhei de soslaio para a cena mas hoje recordo me disso com uma gargalhada. Que tralho! Lindo!
Esse meu amigo, do qual não em lembro sequer do nome, fez uma fita brutal. Ali em pranto fazendo precipitar um casal mais velho que passava numa urgência na assistência. O velho que gritara, agora agarrava pelo braço outros dois e eu era admoestado já pela minha mãe da janela a sair dali de cima. Credo, que exagero. Um coro de indignação contra os irresponsáveis que não limpavam o entulho, que havia já ratos e ratazanas, tétano doenças, partir pernas, perigo, políticos que não fazem nada e por aí fora. Ligações e encadeamentos apenas possíveis a quem é adulto. E pelo que via já na altura, nada como uma boa indignação para juntar a população num domingo de tarde. E que bela e fugaz é essa concordância uníssona dos indignados contra o abstracto inimigo comum a quem apetece cuspir e arrancar os olhos.

Não sei se logo nos dias seguintes, não tenho presente, foi limpo o entulho e do que outrora fora um prédio. Passou a terreno baldio, vedado para depois nascer outro prédio vulgaríssimo para quem passa na rua.

Ninguém ficou com o banco, ninguém se sentou nele, ninguém concluiu a fantasia da sua personagem e ultrapassou o banco como uma tarefa cumprida. Agora já adulto acho que um se chamava Pedro. Dos outros não me lembro, sei que um, talvez mora ou morou até há bem pouco tempo naquela rua. Não sei do que lhes aconteceu. A vida continuou e nem sei se sou o único que se lembra desta coisa parva e pequena.

Não te queres sentar numa cadeira mais confortável Bruno? Não deixa tar estou bem aqui! Não! A sério! Eu tenho ali uma cadeira de jardim daquelas de plástico…! Oh Luísa obrigado deixa tar, tou fixe aqui. A sério. Obrigado Luísa!

Ganhei seus filhos da puta!

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