domingo, 18 de janeiro de 2009

Tenho uma verdade sentada à minha frente, mas que mais parece um gato do que aquilo que realmente ela é!

Curiosa, irrequieta e teimosa, suspira impaciente vincando o assento com o redemoinho da fuga que lhe ocupa toda a cabeça.
Abriu um V no peito da perna, e sorriu para mim. Não fez sangue, não mostrou carne. Fez apenas o gesto com o dedo.
Mas de olhos fincados nos meus, foi como se sacrificasse a integridade santa do seu vaso de carne em nome de uma vontade de saltar da cadeira e correr para mim.
Vê-se claramente que me quer. Deve imaginar esse momento há mais tempo que os tempos que se possam quantificar ou imaginar por alguem.

Articula a boca em forma de segredo, imaginando-se perto do meu ouvido, a humedecer a minha pele com a verdade. Imagina que lhe leio os lábios, ou imagino eu que assim ela o pretende. É estonteante e intoxicante tudo o que representa, mas persiste sentada. Precisa que a chame, que a queira também. Que a deseje!

Levanto-me, provoquei uma reacção, ela espera.

Caminho sobre as tábuas de madeira antiga, envernizadas, daquele quarto vazio de paredes brancas e tecto alto. Faço-o lento e sigo-a pelo canto dos olhos, a fingir abstração, a calcular - a fingir que calculo - os passos seguintes. Parece tudo falso e a verdade segue-me, sabendo. Sei que sabe!

Abro uma janela para sentir o "fora"! Com o tornear do trinco desajeitado e velho da janela, crio primeiro um eco, depois um silêncio e mesmo antes de abrir de par em par
as duas vidraças, deixo-me distrair e toda a minha pele me avisa que ela se levantou. Um medo esquisito electriza a minha nuca. Uma noção de perigo que não defino nem imagino em acções possiveis contra mim. Primeiro um eco, depois o silêncio e depois uma vaga gigantesca de ar e som de buzinas de automóveis e carros electricos e pessoas bate na minha cara e no meu corpo. Passa por mim, invade e viola toda a sala virgem que se encostava a mim, sobre as costas.

Respirei fundo e ganhei coragem. Senti os meus braços a impelirem contra a gravidade, para assumir protecção e virei-me, preparado como um animal encurralado.

Estava lá ao fundo, junto à porta, imóvel com a mão sobre a maçaneta, com os olhos fincados no chão e cabelo corrido a gravitar. "vais te embora?" - abanou a cabeça negativamente como faz uma criança desiludida; desanimada. "Queres que feche a janela?" encolheu os ombros como se não lhe importasse com nada destas perguntas.

Avisei que ia fumar, como se isso me resolvesse fosse o que fosse ou que me ganhasse tempo não sei para o quê. Acendi um cigarro amarrotado de um maço de ventil.
Só dois restam. Lá em baixo lembro me que existe uma papelaria que vende tabaco, engendro na minha cabeça a minha figura a passar por ela, a murmurar algo que a
fizesse estar ali quando regressasse, a descer o primeiro lance de forma segura. Não ouviria a porta a fechar, apressaria o meu passo e ansioso percorreria feito tonto todo o percurso até à tabacaria. Do bolso, uns trocos parvos que não se ajeitam nas mãos, comprariam à pressa um novo ventil, depois de uma fila estupida de duas ou 3 pessoas, mas sempre a vigiar a porta da entrada do meu prédio, ansioso por que ela não fuja, me escape, que a perca. Chegaria ofegante à porta, estaria encostada ainda, ainda bem, pois não tinha a chave e ela poderia muito bem trancar-se e não me deixar entrar - Isto se ela ainda lá estivesse - e abriria a porta cansado e sem vontade genuina de fumar.

Feito parvo nesta minha história infantil, ela ainda lá estava imóvel. A minha imaginação deve ter vagueado por míseros segundos pois ainda ouvi a minha voz a terminar de
dizer que "ia fumar". Mas curiosos são os impulsos da mente, pois que de seguida apalpei o bolso das calças para ver se tinha as chaves e comentei a meia voz, como um tolo, que só tinha dois cigarros. Como se ela se importasse, como se lhe pedisse permissão para executar a minha privada cinematografica e virtual aventura de ir comprar tabaco.

Recebi silêncio, merecido. e não fui!

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